Não Olho Mais Para as Estrelas
non-tech Usa Russia Ussr Politics Capitalism SpaceFui uma criança vidrada em exploração espacial e no universo em geral. Um dos programas de computador que mais usei no 1º ou 2º computador a que tive acesso foi a Enciclopédia do Espaço e do Universo da Globo Multimídia. Era uma enciclopédia em CD-ROM do tipo que era comum na época dos primeiros kits multimídia. A mais famosa delas acho que foi a Microsoft Encarta. Não lembro os anos exatos, foi na época em que quase todo mundo que eu conhecia usava Windows 95 ou 98.

A tela principal da Enciclopédia do Espaço e do Universo.
Gastei um tempo inacreditável montando o Saturno V errado de propósito só para ouvir o barulho ridículo que tocava numa das atividades disponíveis na Enciclopédia.
Na parte didática em si, gastei muito tempo lendo sobre as máquinas. Talvez isso já estivesse antecipando de certa forma o meu interesse em computadores. Devo ter visto todo o conteúdo do CD várias vezes, mas com certeza visitei mais os conteúdos sobre naves, satélites artificiais e estações espaciais.

Modelo 3D da estação espacial soviética Mir sendo mostrado na Enciclopédia do Espaço e do Universo.
A astronomia, a história, os cosmonautas e astronautas pioneiros… Tudo isso era interessante, mas ser capaz de fazer máquinas que perseguem cometas e pousam num inferno ácido me parecia magia.
Infelizmente meus pais se desfizeram do CD-ROM da Enciclopédia do Espaço e do Universo em certa altura. Não senti tanta falta na época1 porque depois veio a possibilidade de me conectar com a Internet e ver conteúdo sobre exploração espacial em sites como o da NASA.
No momento do acoplamento da 1ª nave privada na ISS, eu ainda me interessava no assunto e acompanhava bastante. Cheguei a ouvir o Houston, Station, we’ve got us a dragon by the tail. por streaming, ao vivo. Isso aconteceu há mais de 10 anos.
De lá para cá, meu interesse decaiu drasticamente. Ouvi sobre o lançamento do James Webb só superficialmente na imprensa tradicional. Em 2021, eu ainda frequentava o Twitter e seguia algumas pessoas que comentavam empolgadamente sobre o assunto. Não entrei em conversas sobre. Praticamente ignorei.
Se contassem para o Guilherme de 10 anos que o Guilherme adulto perdeu a oportunidade de acompanhar “de perto” um evento tão importante quanto o lançamento do sucessor do Hubble, o Guilherme de 10 anos responderia que é um delírio. Não é possível que esse viajante do tempo tenha realmente conversado comigo. Não deixaria passar, muito menos podendo conversar sobre com outras pessoas interessadas no espaço. Não era eu.
Alguma coisa mudou da época de ver streamings de missões e hoje. Não consigo me empolgar mais, mas não sabia explicar o motivo. Perdi algo importante. Seria bom saber o quê.
Uma intuição do que era só veio recentemente, quando tive contato com as primeiras notícias de descomissionamento da ISS. Depois, quando li que seria uma nave privada que levaria a estação para o seu destino derradeiro, fui atingido como se por uma chuva de tijolos. Fiquei puto. Depois melancólico. Depois puto de novo.
O simbolismo do equipamento construído por agências espaciais estatais sendo destruído por uma nave privada me bateu pesado.
Ver o final de vida da ISS chegar é dolorido para mim não só pelo que ela representa, mas pela constatação de que as coisas aqui embaixo pioraram enquanto ela estava lá em cima. O Hisham expressou melhor do que eu conseguiria num comentário que compartilhou no Mastodon.

Comentário em vídeo no YouTube sobre o descomissionamento da ISS.
Eu parei de acompanhar notícias sobre exploração espacial porque depois de certo ponto, muito do que se lia era sobre bilionários competindo para ver quem possuía o brinquedo maior. É a privatização de tudo e a falência de grandes esforços colaborativos entre as nações. É uma forma de funcionamento do mundo fracassando e outra vencendo. A forma que eu quero é a que está fracassando.
Nem a memória dessa versão impróspera de mundo parecem muito interessados em preservar. Temos que aceitar que a exploração do espaço foi afetada por privatizações e cortes de gastos com pesquisa. Os bilionários que vão ocupar esse espaço (no pun intended) deixado pelos estados não são exatamente flores que se cheiram, claro.
Muita gente mijou em garrafa, muito sindicato não foi criado, muito ambiente de trabalho perigoso foi mantido como está para financiar o rolê de 10 minutos do Jeff Bezos a bordo de uma cápsula lançada por um foguete que muito divertiria Sigmund Freud. Que tipo de cara Elon Musk se mostrou ser, creio que não preciso relembrar. Se você não esteve debaixo de uma pedra nos últimos anos, sabe quem ele é.
É com essas coisas que associo naves espaciais hoje. Não é surpreendente que eu não olhe mais para as estrelas.
P.S.: Para não terminar nessa nota tão deprê, digo que traímos o Premier Cherdenko.
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Hoje sinto. Tive a sorte de achar o CD no Internet Archive. ↩︎