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É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.

Não Aguento Mais Não Aguentar Mais

nonfiction politics capitalism
Autor(es): Anne Helen Petersen
Editora: HarperCollins Brasil
Páginas: 336
Idioma: português
ISBN-13: 9786555111972
ISBN-10: 6555111976

As próximas linhas não farão justiça a esse livro. Fui marcando os trechos com os quais me identifiquei no Kindle e ao final da leitura eram mais de 600 linhas de destaques no My Clippings.txt1. Os trechos que aparecem abaixo não são necessariamente os melhores. Declarei falência de destaques com esse livro. 😅 Posso ter deixado vários trechos interessantes para trás.

Se a quantidade de destaques ainda não deixou claro: fui bem impactado por essa leitura. O título completo em português é Não aguento mais não aguentar mais: Como os Millennials se tornaram a geração do burnout e serve como um bom resumo do que a Anne Helen Petersen tentou - e na minha visão conseguiu com maestria - fazer aqui: rastrear os motivos históricos e econômicos para o estado atual de exaustão e desgraçamento mental da nossa geração.

Vejo uma forte ligação histórica entre os 3 primeiros capítulos denominados Nossos pais com burnout, Miniadultos em crescimento e Faculdade, a qualquer custo. A história que eles contam é, bem resumidamente, a seguinte: na época do FDR e do New Deal as condições dos trabalhadores melhoraram, houve um crescimento da classe média e havia um senso de segurança e estabilidade no trabalho por conta dos sindicatos e direitos sociais adquiridos.

Corta para a década de 70 - com a estagnação econômica - e para a era Reagan - com neoliberalismo, fundamentalismo de mercado e enfraquecimento de sindicatos - e os Boomers começaram a temer a desaceleração do “trem do crescimento”. Essa ansiedade de classe, causada seja por ameças reais ou imaginárias fez os Boomers focarem na única coisa que sentiam ter sob controle: a rotina dos filhos.

Examinar os Boomers pela lente da história econômica explica muita coisa: seus hábitos eleitorais e seu retorno a si mesmos. Porém, se você ainda está se perguntando o que isso tem a ver com o burnout dos Millennials, pense bem. Cercados por ameaças imaginadas e incerteza crescente, os Boomers de classe média se voltaram com ainda mais força ao que podiam tentar controlar: seus filhos.

Os Millennials, então, começam a ser preparados desde a infância para a entrada na faculdade e a competição no mercado de trabalho. Tudo é estruturado e planejado desde cedo para evitar essa “queda” da classe média.

Elas precisam ser treinadas para serem boas funcionárias, fazendo muitas tarefas ao mesmo tempo e alimentando contatos. Todas as partes da vida da criança, em outras palavras, podem ser otimizadas para melhor prepará-la para sua eventual entrada no mercado de trabalho. Elas se tornam miniadultos, com as respectivas ansiedades e expectativas, anos antes da vida adulta.

Pais Boomers se preocupavam com todas as coisas que pais sempre se preocupam. Mas também sentiam uma ansiedade profunda sobre a criação, manutenção ou “doação” do status de classe média em um período de mobilidade social descendente generalizada — preparando uma geração de crianças para o trabalho, não importava o custo, até que conseguissem.

Importamos cada vez mais características ruins da sociabilidade dos EUA - nossos Ensinos Médios já são principalmente sobre sermos aprovados em vestibulares ou no ENEM - mas lá o processo é mais penoso para o jovem. Todo o currículo do candidato tem peso.

Millennials se tornaram a primeira geração a se definir completamente como currículos ambulantes para as faculdades. Com ajuda dos nossos pais, da sociedade e dos professores, passamos a nos compreender, conscientemente ou não, como “capital humano”: sujeitos a serem otimizados para melhor performance na economia.

Em certo ponto desse 3º capítulo, uma entrevistada comenta:

Nunca me ocorreu que a faculdade fosse algo opcional

Citando os economistas Matthias Doepke e Fabrizio Zilibotti:

“Em um mundo com riscos tão altos, o apelo de uma criação mais permissiva sumiu”, escrevem eles. “Os pais de classe média começaram a incentivar seus filhos a adotarem comportamentos maduros de busca pelo sucesso.” Em vez de criar filhos, muitos pais, consciente e inconscientemente, começaram a criar currículos.

Sobre deixar de estudar para aprender e passar a estudar para ser um bom empregado, Anne diz:

Essa é uma visão incrivelmente utilitária da educação, implicando que o objetivo final do sistema é nos moldar como trabalhadores eficientes, e não nos preparar para pensar ou para ser bons cidadãos.

O objetivo geral era se tornar a versão mais interessante e mais vendável de si mesmo — mesmo que só no papel.

Os efeitos psicológicos desse ambiente “entre na faculdade ou fracasse totalmente na vida” são grandes:

Os pais não tinham ideia do quanto ele amarrava seu valor como pessoa à média no colégio. “Sinceramente, acho que se eu não tivesse conseguido manter a média acima de 4, eu teria me matado”, ele me contou.

“Um comentário comum que ouvi sobre crianças superdotadas ou mais inteligentes que a média é que nenhum de nós de fato aprendeu a pensar”, disse ele. “Nós simplesmente conseguíamos reter informação com muito mais facilidade, e o mais importante, tínhamos ótima compreensão verbal e escrita, o que é 90% dos trabalhos escolares.

Tudo isso para “resolver” problemas muito mais complexos.

[…] ensino superior foi considerado a solução do “bom senso” para um grupo de problemas econômicos muito mais complicados: automação, competição com a Rússia (e depois Japão, e depois China), a mobilidade social descendente e o “desaparecimento da classe média”, que, como Ehrenreich nos lembra, era basicamente o desaparecimento da classe média industrial.

Esses 3 primeiros capítulos foram os que me pareceram mais historicamente ligados no livro. Os demais parecem um pouco mais independentes entre si. O 4º capítulo, Faça o que você ama e ainda vai ter que trabalhar todos os dias pelo resto da sua vida, trata de como o propalado trabalho com o que se ama pode acabar sendo uma armadilha…

O desejo pelo emprego descolado pelo qual você é apaixonado é um fenômeno particularmente moderno e burguês — e, como veremos, uma forma de tornar certo tipo de trabalho a tal ponto desejável que os trabalhadores vão tolerar todo tipo de exploração pela “honra” de ocupar aquela vaga.

A retórica do “Faça o que você ama e não vai trabalhar um dia sequer na sua vida” é uma armadilha para o burnout. Ao disfarçarmos o trabalho na linguagem da “paixão”, somos impedidos de pensar no que fazemos como aquilo que verdadeiramente é: um ofício, não a totalidade de nossas vidas.

Na maior parte das vezes, tudo o que a paixão lhe traz é a permissão para receber bem pouco.

…e de um tema que é muito importante, mesmo sem ser o principal do capítulo: a erosão da solidariedade de classe:

O quanto empregos “amáveis” são desejáveis é parte do que os torna tão insustentáveis: tantas pessoas estão competindo por tão poucas posições que os padrões de pagamento podem ser reduzidos de forma contínua sem muitas consequências. Sempre vai ter alguém igualmente apaixonado pelo trabalho para ficar no seu lugar.

[…] conforme os sindicatos — e a legislação que os protegia — se tornaram impopulares, o mesmo ocorreu com a solidariedade entre trabalhadores.

“A solidariedade se torna suspeita quando cada indivíduo se vê como um trabalhador independente, preso em uma batalha de soma zero com o resto da sociedade”, explica Tokumitsu. “Cada momento que se passa sem trabalhar significa que outra pessoa está saindo à sua frente.”

Se um colega de trabalho insiste em horários determinados ou até está tirando umas simples férias, ele não está criando limites saudáveis entre vida pessoal e profissional — está dando a você uma oportunidade de mostrar que pode trabalhar com mais afinco, com mais qualidade, mais do que ele.

Os capítulos 5 e 6, Como o trabalho ficou tão merda e Como o trabalho continua tão merda, tratam da ascensão e estabelecimento da precarização das relações de trabalho e aparecimento do precariado (freelancers, temporários, terceirizados, trabalhadores de plataformas como o Uber).

O precariado não representa a visão da classe trabalhadora de muitos americanos. Conforme aponta o teórico Guy Standing, a classe trabalhadora, ao menos da forma que é lembrada, tinha “empregos de longo prazo com horários fixos e possibilidade de progresso estabelecidas, passíveis de sindicalização e de acordos coletivos, com cargos com nomes que seus pais e suas mães conseguiriam entender e empregadores cujos nomes e rostos lhe seriam familiares”.

[…] todo dia o salariado segue seu “curso”, conforme Standing coloca, para o precariado: empregados que trabalham em tempo integral são demitidos e substituídos por terceirizados; as novas e “inovadoras” empresas de tecnologias se recusam até a categorizar o grosso de sua mão de obra como funcionários.

Nas empresas que tentavam fazer cortes e diminuir a folha de pagamento, os temporários eram adorados por serem “flexíveis”, mas o que elas realmente queriam dizer era que eram descartáveis.

A desregulamentação e a legislação contra os sindicatos, junto a novas maneiras de escapar das regulamentações que já existem, nos fizeram voltar à forma mais impiedosa do capitalismo. A economia está “crescendo”, mas a distância entre pobres e ricos continua aumentando, e a classe média — criada nesse período de relativa benevolência corporativa — só diminui.

Ser “empregado” hoje não significa ter um bom trabalho, um emprego estável ou um serviço que pague bem o suficiente para tirar uma família da linha da pobreza. Há um desligamento alarmante entre a saúde ostensiva da economia e a saúde mental e física daqueles que a alimentam.

As consequências psicológicas são claras e ajudam na reprodução das condições ruins de trabalho:

[…] condições de trabalho de merda produzem burnout, mas o burnout — e a inabilidade resultante, seja por falta de energia ou de recursos, para resistir à exploração — ajuda a manter o trabalho uma merda. Uma legislação importante para atualizar leis trabalhistas para responder às realidades atuais do ambiente de trabalho pode e vai ajudar, mas também é preciso solidariedade: uma palavra antiquada que simplesmente significa consenso, entre uma grande variedade de pessoas que pensam de forma semelhante, de que resistir é possível.

Sabe quem não precisa dormir? Robôs. Podemos dizer que odiamos a ideia de nos transformarmos em robôs, mas, para muitos Millennials, nós nos robotizamos por vontade própria, na esperança de ganhar aquela estabilidade enganosa que tanto almejamos.

[…] é muito mais fácil tomar um energético do que encarar a face brutal de nosso sistema econômico atual e chamá-lo do que ele realmente é. Como Jia Tolentino escreveu na The New Yorker: “Na raiz disso está a obsessão americana por autossuficiência, o que torna mais aceitável aplaudir um indivíduo por trabalhar até a morte do que argumentar que um indivíduo trabalhar até a morte é prova de um sistema econômico falho”

O capítulo 7, Tecnologia faz tudo funcionar bem, trata de, bem, como a tecnologia está nos fazendo funcionar mal.

[…] as características da internet que são especialmente catalisadoras do burnout: 1) mídias sociais voltadas para Millennials; 2) notícias; 3) tecnologias que arrastam o trabalho para o que resta da nossa vida pessoal.

A internet não é a causa do nosso burnout, mas sua promessa de “tornar nossa vida mais fácil” é profundamente prejudicial, responsável pela ilusão de que “fazer tudo” não só é possível, mas obrigatório.

O capítulo 8, O que é um fim de semana?, é sobre como até o nosso tempo “livre” está se tornando exaustivo. Desde como estamos perdendo a capacidade de não monetizar nossos hobbies…

As pessoas cultivavam hobbies, qualquer coisa desde andar sem rumo à construção de aeromodelos. O que importava é que não tinham como objetivo fazer com que elas se tornassem mais atraentes, nem declarar status social ou fazer com que ganhassem algum dinheiro extra. Esses hobbies eram feitos por prazer. Por isso, é tão irônico que os Millennials, estereotipados como a geração mais egocêntrica, tenham perdido de vista como é fazer algo apenas pelo prazer pessoal.

Quando as pessoas encontram tempo e espaço mental para cultivar um hobby, especialmente se forem “boas” nele, a pressão para monetizá-lo passa a se acumular. Se alguém gosta de fazer bolos e pães e começa a levar suas criações para festas, a única maneira que conhecemos de elogiar é sugerir: “Você poderia ganhar dinheiro com isso!”.

…até sobre como a ansiedade de classe nos “obriga” a consumir certos produtos culturais ou de entretenimento. Quantas vezes o seu tempo de descanso acabou não sendo reparador porque você estava preocupada com uma lista de leituras ou de séries para “botar em dia” só para ter algo sobre o que falar no seu círculo social nessa época de individualismo extremo em que está cada vez mais difícil ter assuntos em comum?

[…] quando esse tipo de consumo cultural se torna o único modo de comprar um ingresso para a sua classe aspiracional, parece mais uma obrigação e menos uma escolha: uma forma de trabalho não remunerado. Isso explica por que “relaxar” se engajando nessas atividades pode ser tão desgastante, tão insatisfatório, tão frustrantemente não restaurador.

Esse capítulo traz uma das maiores “pedradas” do livro:

Um acerto de contas com o burnout é, muitas vezes, um acerto de contas com o fato de que as coisas com as quais você preenche o seu dia — as coisas com as quais você preenche a sua vida — parecem impossivelmente distantes do tipo de vida que se deseja viver e do tipo de significado que você deseja dar a ela. É por isso que a condição do burnout é mais do que apenas o vício em trabalhar. É uma alienação de si mesmo e do desejo. Se você subtrair sua capacidade de trabalhar, quem é você?

É isso. Com o que você está preenchendo a sua vida?

O capítulo 9, Os pais Millennials exaustos, é sobre os desafios, principalmente da maternidade, para as pessoas de nossa geração.

Ter uma rede de cuidados infantis acessíveis e universalmente disponíveis — para crianças pequenas, mas também para aquelas que precisam de cuidados antes e depois da escola — seria transformador. Tiraria um fardo imenso de tantos pais, e de mães em especial. Nós subsidiamos fazendeiros, subsidiamos o crescimento de empresas locais, financiamos a educação pública. Então por que isso não acontece?

Também fala da divisão desigual do trabalho doméstico. Apesar de muitos parceiros da geração Millennial serem a favor da divisão igualitária do trabalho de cuidado com os filhos, o discurso ainda é distante da prática e o fardo da maternidade é muito mais pesado que o da paternidade.

[…] não é suficiente ter ideais progressistas sobre parentalidade. Nossa versão atual do capitalismo patriarcal destrói esses ideais, não importa o quanto eles sejam sinceros ou profundos, e os substitui com o oposto conservador: uma distribuição dramaticamente desigual do trabalho doméstico, desvalorização generalizada do trabalho feminino e empregos pensados para dar preferência àqueles que não carregam o fardo das responsabilidades com crianças.

O capítulo 9 é pungente e me deixou cansado só de ler. A rotina de quem decidiu pela maternidade é árdua. Só posso vislumbrar o nível de cansaço e não quero um parecido para mim.

A conclusão se propõe a apresentar soluções para o nosso estado de exaustão, deixando claro que o problema é principalmente sistêmico e que, portanto, não há soluções individuais.

Essa abordagem é a que fez o livro ser ótimo para mim. A autora constantemente deixa claro que nosso burnout é um problema coletivo, sistêmico. Não tem pudor de falar contra capitalismo ou desigualdades. Imaginei uma abordagem mais psicológica do que sociológica e econômica e, para minha grata surpresa, foi justamente o contrário.

Foi uma leitura que serviu ao mesmo tempo como abraço e açoite. Abraço por alguém colocar em palavras e de forma tão coesa como chegamos aqui e açoite por constantemente me lembrar de que me engambelaram ao me venderem os ideais de estabilidade via sacrifício pessoal e a mágica da meritocracia.

Se você é um Millennial na batalha diária e está farto de escutar os mais velhos nos chamando de preguiçosos e mimados, talvez seja um livro com o mesmo efeito para você. Foi uma lavada de alma na mesma medida em que foi emputecedor.


  1. O arquivo que mantém os trechos destacados em formato de texto plano. Nos Kindles que já tive o arquivo fica em documents/My Clippings.txt↩︎

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